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A importância da Psicologia Analítica para a Educação

  • Foto do escritor: Rosana Giannoni
    Rosana Giannoni
  • 27 de jul. de 2020
  • 22 min de leitura

Para trazer o tema optei por trazer as próprias palavras de Jung durante sua conferência pronunciada no Congresso Internacional para Educação em Territet-Montreux 1923. Texto extraído do livro de C. G. Jung: o desenvolvimento da personalidade

“É com certa hesitação que, diante dos senhores, assumo a tarefa de mostrar, nesta breve conferência, as conexões existentes entre os dados da psicologia analítica e os problemas da educação. Primeiramente se trata de um campo vasto e abrangente da experiência humana, que não é possível descrever com umas poucas teses sobrecarregadas de conteúdo. Em segundo lugar, no que tange à psicologia analítica, cumpre dizer que se trata tanto de um método como de um modo de conceber. Não se pode pressupor nem que ela seja conhecida de todos, nem que possa ser aplicada com facilidade aos problemas da educação. Seria quase indispensável apresentar antes uma introdução histórica sobre o desenvolvimento dessa recente ciência psicológica, pois com isso poderemos compreender várias coisas que se nos afigurariam de difícil compreensão se hoje nos fossem propostas diretamente.

Surgida inicialmente das experiências do hipnotismo, a psicanálise, segundo a entende Freud, era um método especificamente médico destinado a explorar as causas psíquicas das perturbações nervosas funcionais (e portanto não orgânicas), e em especial as causas sexuais dessas perturbações. Ao mesmo tempo, tornou-se um método de tratamento, ao admitir-se a hipótese de que a conscientização das causas sexuais teria um efeito curativo decisivo. A escola freudiana ainda concebe hoje em dia a psicanálise nesse sentido e se recusa a admitir outra fonte causadora de perturbações nervosas que não seja a sexual. De início me baseei nesse método e nessa teoria, mas com o passar dos anos comecei a desenvolver o conceito de psicologia analítica, com a finalidade de exprimir o fato de que a pesquisa psicológica já tinha abandonado a moldura acanhada de uma técnica de tratamento médico, com toda a sua limitação provinda de certos pressupostos teóricos, transferindo-se para o campo mais geral da psicologia do homem normal. Portanto, ao me dirigir aos senhores e expor o relacionamento entre a psicologia analítica e a educação, deixo de considerar a análise freudiana. Como ela é apenas uma psicologia das ramificações do instinto sexual na psique, tão-somente seria justificado mencioná-la se nosso propósito fosse o de falar exclusivamente sobre a psicologia sexual da criança. Quero evitar de propósito a falsa aparência de que eu, de algum modo qualquer, esteja aprovando aquelas opiniões, segundo as quais deva ser explicado, a partir dos germes ainda imaturos da função sexual, o relacionamento da criança com os pais, com o professor, com os irmãos e companheiros. Tais opiniões, que certamente não lhes devem ser desconhecidas, são, de acordo com a minha convicção, uma generalização precipitada e restrita a um único aspecto, que já causou muitas das mais absurdas interpretações. Quando surgem na criança manifestações doentias que justifiquem uma explicação por parte da psicologia sexual, nesses casos se deve responsabilizar não tanto a psicologia própria da criança, mas muito mais a psicologia dos pais, perturbada na esfera sexual. A criança tem uma psique extremamente influenciável e dependente, que se movimenta por completo no âmbito nebuloso da psique dos pais, do qual só relativamente tarde consegue libertar-se.

Procurarei agora expor brevemente aos senhores os pontos de vista fundamentais da psicologia analítica, que devem ser tomados em conta no julgamento da psique infantil e especialmente da criança em idade escolar. Certamente os senhores não estarão esperando que eu esteja em condições de apresentar-lhes uma série de conselhos e sugestões de aplicação prática imediata. O que lhes posso transmitir é apenas uma compreensão mais aprofundada das leis gerais que orientam o desenvolvimento psíquico da criança. Devo, pois, contentar-me com a esperança de que os senhores consigam por esta minha exposição ter uma ideia do misterioso processo de formação da capacidade humana mais elevada. A grande responsabilidade que lhes está confiada como educadores da geração futura guardar-vos-á de tirar conclusões apressadas. Muitas vezes é preciso que certos pontos de vista nos acompanhem por longo tempo em nossas reflexões, até que compreendamos em que lugar de nosso trabalho prático possam ser aplicados com vantagem. O conhecimento psíquico mais aprofundado, por parte do professor, não deveria jamais ser descarregado diretamente sobre o aluno, como lamentavelmente talvez aconteça. Tal conhecimento deve em primeiro lugar ajudar o professor a conseguir uma atitude mais compreensiva em relação à vida psíquica da criança. Esse conhecimento está destinado às pessoas adultas e não às crianças, que por enquanto necessitam apenas de coisas elementares.

Uma das conquistas mais importantes da psicologia analítica é sem dúvida o conhecimento da estrutura biológica da alma. Não será fácil explicar em poucas palavras o que nos custou muitos anos para descobrir. Por isso preciso começar agora um pouco adiante, para depois poder retornar à alma infantil em especial.

Os senhores de certo sabem que até o presente a psicologia, assim como vem sendo representada pela escola de Wundt, é exclusivamente uma psicologia da consciência normal, como se a alma constasse somente de fenômenos da consciência. Contudo, a psicologia médica, principalmente a francesa, logo se viu forçada a admitir fenômenos psíquicos inconscientes. Hoje em dia aceitamos que a consciência consta apenas, daquele conjunto de imagens que estão associadas diretamente ao “eu”. Acham-se ligados ao “eu” os conteúdos psíquicos dotados de certa intensidade. Os demais conteúdos, porém, que não conseguem adquirir a intensidade necessária, ou que já a perderam, são subliminares e pertencem à esfera do inconsciente. O inconsciente, em vista de sua extensão indeterminável, poderia talvez ser comparado ao mar, e o consciente seria apenas uma ilha que se erguesse sobre o mar. Mas devemos parar aí na comparação, pois a relação entre o consciente e o inconsciente é essencialmente diversa da que existe entre a ilha e o mar. Não há mesmo nenhuma relação estável, mas reina uma troca continua e um deslocamento constante dos conteúdos. Tanto o consciente como o inconsciente não representam algo de estável e permanente, mas cada um é algo de vivo, que está em continua atuação recíproca sobre o outro. Conteúdos conscientes acabam mergulhando no inconsciente quando perdem sua intensidade ou atualidade. A este processo denominamos esquecer. A partir do inconsciente emergem novas imagens e tendências que penetram na consciência; falamos de ideias súbitas e impulsos. O inconsciente é como a terra do jardim, da qual brota a consciência. A consciência se desenvolve a partir de certos começos, e não surge logo como algo de completo e acabado.

É na criança que se dá esse desenvolvimento da consciência. Nos primeiros anos de vida quase não se verifica consciência alguma, apesar de que já muito cedo seja evidente a existência de processos psíquicos. Mas esses processos não estão relacionados a nenhum “eu”, não têm um centro e por isso carecem de continuidade, sem a qual é impossível a consciência. Provém daí o fato de a criança também não ter memória no sentido usual, apesar da plasticidade e receptividade para as impressões de que está dotado seu órgão psíquico. Somente quando a criança começa a dizer “eu” é que tem começo a continuidade da consciência, já perceptível, mas por enquanto ainda muitas vezes interrompida. Nesses intervalos se intercalam numerosos períodos de inconsciência. Durante os primeiros anos de vida, percebe-se claramente na criança como a consciência se vai formando por um agrupamento gradual de fragmentos. Esse processo propriamente nunca cessa no decurso da vida inteira. A partir, porém, da pós-puberdade torna-se cada vez mais lento, e desde então é sempre mais raro que novas partes da esfera inconsciente venham juntar-se à consciência. É importante o período que vai do nascimento até o término da puberdade psíquica, que para o homem, em nosso clima e em nossa raça (Suíça), pode estender-se até os vinte e cinco anos, e na mulher termina antes, aos dezenove ou vinte anos; justamente nesse período ocorre o maior e mais intenso desenvolvimento da consciência. Esse desenvolvimento estabelece vínculos fortes entre o “eu” e os processos psíquicos até então inconscientes, e também os separa nitidamente do inconsciente. Desse modo emerge a consciência a partir do inconsciente, como uma nova ilha aflora sobre a superfície do mar. Pela educação e formação das crianças procuramos auxiliar esse processo. A escola é apenas um meio que procura apoiar de modo apropriado o processo de formação da consciência. Sob esse aspecto, cultura é a consciência no grau mais alto possível.

Perguntando agora o que iria acontecer se não tivéssemos escolas e se deixássemos as crianças entregues a si mesmas, deveríamos então responder: as crianças continuariam inconscientes em grau muito maior. E o que notaríamos de especial nesse estado de coisas? Seria um estado primitivo, o que significa que quando tais crianças chegassem à idade adulta não passariam de primitivos, apesar de toda a inteligência natural de que dispõem; seriam apenas “selvagens”, como qualquer membro de uma tribo inteligente de negros ou de índios. De maneira nenhuma seriam meros bobos, mas apenas inteligentes por instinto; seriam ignorantes e, por isso, inconscientes quanto a si e quanto ao mundo. Começariam sua vida em estado de cultura consideravelmente inferior e em muita pouca coisa se distinguiriam das raças primitivas. De certo modo foi possível observar tal decaída a um nível inferior pelo que sucedeu aos imigrantes espanhóis e portugueses na América do Sul, como aos bôeres holandeses na África. A possibilidade de retrocesso à etapa primitiva baseia-se no fato de a mesma lei biogenética valer não apenas para o desenvolvimento do corpo, mas também para o da alma.

De acordo com essa lei, repete-se, como é sabido, a história evolutiva da espécie no desenvolvimento embrionário do indivíduo. Assim, o homem percorre, até certo grau, durante a existência embrionária, as formas anatômicas do passado longínquo. A mesma lei vale também para o desenvolvimento psíquico do homem. Segundo essa lei, a criança se desenvolve a partir de um estado inicial inconsciente e semelhante ao do animal, até atingir a consciência: primeiro a consciência primitiva e, a seguir, gradativamente, a consciência civilizada.

O estado inconsciente de si mesmo, que se estende pelos dois ou três primeiros anos de vida, pode ser comparado ao estado psíquico animal. É o estado em que o indivíduo se acha como que inteiramente fundido com as condições do meio ambiente. Do mesmo modo que a criança, durante a fase embrionária, quase não passa de uma parte do corpo materno, do qual depende completamente, assim também de modo semelhante a psique da primeira infância, até certo ponto, é apenas parte da psique materna e, logo depois, também da psique paterna, em consequência da atuação comum dos pais. Daí provém o fato de que as perturbações nervosas e psíquicas infantis, até muito além da idade escolar, por assim dizer, se devem exclusivamente a perturbações na esfera psíquica dos pais. Dificuldades no relacionamento dos pais entre si se refletem infalivelmente na psique da criança, podendo produzir nela perturbações até mesmo doentias. Também o conteúdo dos sonhos das crianças pequenas se refere frequentemente muito mais aos pais do que a ela mesma. [Há muito tempo pude observar alguns sonhos extremamente curiosos surgidos na primeira infância, como por exemplo os primeiros sonhos de que os pacientes tinham lembrança. Eram “grandes sonhos”, cujo conteúdo muitas vezes não era de modo nenhum infantil, de maneira que me convenci imediatamente de que poderiam ser explicados por meio da psicologia dos pais. Entre eles havia o caso de um menino, cujos sonhos refletiam todo o problema erótico e religioso do pai. Este não se lembrava de nenhum sonho desse tipo, de modo que por algum tempo analisei o pai através dos sonhos do filho. Por fim começou o pai também a sonhar, e então terminaram os sonhos do filho. Mais tarde tornou-se claro para mim que os sonhos estranhos de crianças pequenas são completamente autênticos, pois encerram arquétipos, os quais constituem a razão de seu cunho aparentemente adulto.1]

1 O texto entre colchetes provém da redação inglesa, levemente ampliado, e foi vertido para o alemão pelos editores. As tentativas de levar C. G. Jung a publicar outros escritos acerca de sua coleção de sonhos infantis não tiveram resultado por falta de tempo da parte dele. No entanto, ele dirigiu quatro seminários sobre sonhos infantis, durante os anos de 1935 e 1940, na Eidgenössische Technische Hochschule (Escola Técnica Superior Confederada), em Zurique, cujos protocolos deverão ser publicados mais tarde.

Ocorre certa mudança logo que a criança começa a desenvolver a consciência do próprio “eu”; o que fica documentado exteriormente, entre outras coisas, por começar ela a dizer “eu”. Normalmente ocorre essa mudança entre três e cinco anos de idade, mas pode dar-se também antes. A partir desse momento, podemos dizer que já existe uma psique individual. Mas a psique individual costuma atingir uma relativa independência apenas após a puberdade, enquanto que até aí continua sendo em grau elevado joguete dos impulsos e das condições ambientais. Falando-se, pois, de uma criança antes da puberdade, poder-se-ia afirmar que, do ponto de vista psíquico, ela propriamente ainda nem existe. Certamente, quando a criança de seis anos entra na escola, ainda é, em todo o sentido, apenas um produto dos pais; é dotada, sem dúvida, de uma consciência do “eu” em estado embrionário, mas de maneira alguma é capaz de afirmar sua personalidade, seja como for. É certo que somos tentados a considerar mormente as crianças esquisitas ou cabeçudas, as indóceis ou as difíceis de educar, como se fossem especialmente dotadas de individualidade ou de vontade própria. Mas é puro engano. Em tais casos deveríamos sempre examinar o ambiente doméstico e o relacionamento psíquico dos pais, e, nestes, quase sem exceção, haveríamos de encontrar as únicas e verdadeiras razões que explicassem as dificuldades dos filhos. O modo de ser perturbador dessas crianças é muito menos expressão do interior delas mesmas do que reflexo das influências perturbadoras dos pais. O médico, ao ter de tratar de um distúrbio nervoso em criança dessa idade, agirá corretamente se procurar que primeiro os pais da criança sejam submetidos a um tratamento [a fim de chamar-lhes seriamente a atenção para seu estado psíquico, a saber: seus problemas, a maneira como vivem ou deixam de viver, as suas aspirações que foram realizadas ou descuidadas, a atmosfera reinante na família e os métodos educacionais empregados. Todo esse condicionamento psíquico tem influência extremamente profunda na criança. Nos primeiros anos vive a criança da “participação mística” (participation mystique) com os pais. Podemos verificar reiteradamente como a criança reage prontamente a quaisquer desenvolvimentos importantes que ocorram na psique dos pais. Acho desnecessário dizer que tanto os pais como os filhos estão inconscientes a respeito do que está acontecendo. Como são contagiantes os complexos dos pais, deduz-se dos efeitos que suas singularidades produzem nos filhos. Mesmo que os pais façam esforços constantes e eficientes para se dominarem, de modo que um adulto nem sequer perceba o mínimo vestígio de um complexo adulto, contudo os filhos de qualquer maneira serão afetados por ele. Recordo-me do caso ilustrativo de três meninas, filhas de mãe devotada ao extremo. Ao entrarem na puberdade, acabaram confessando mutuamente, muito envergonhadas, que por anos a fio tinham tido sonhos horríveis sobre a mãe. Sonhavam que ela era uma bruxa ou um animal perigoso, e não conseguiam entender isso de maneira alguma, pois a mãe era amorosa e se sacrificava por elas. Anos mais tarde a mãe passou a sofrer de doença mental e nos acessos de loucura se punha a andar de quatro como um lobisomem e a imitar o grunhido dos porcos, o ladrar dos cães e o rosnar dos ursos.2]. Os exemplos que aqui apresento aos senhores mostram uma aproximação extraordinária entre os hábitos psíquicos existentes nos membros da mesma família, chegando quase à identidade.

2. O manuscrito e a tradução inglesa trazem a anotação de que o autor, nesta parte da exposição, fez uma demonstração referente à experiência associativa (cf. Ob. Compl. II) em forma livre. Para este texto entre colchetes, ver nota 1

Isto é uma expressão da identidade primitiva, da qual apenas lentamente se vai libertando a consciência individual. Nessa luta pela independência a escola desempenha papel muito importante por ser o primeiro ambiente que a criança encontra fora da família. Os companheiros substituem os irmãos, o professor o pai, e a professora a mãe. É muito importante que o professor esteja consciente desse seu papel. Sua tarefa não consiste apenas em meter na cabeça das crianças certa quantidade de ensinamentos, mas também em influir sobre as crianças, em favor de sua personalidade total. Essa atuação sobre a personalidade, no mínimo, é tão importante como a atividade docente, se não até mais importante, pelo menos em certos casos. Se é falta de sorte da criança não encontrar uma verdadeira família em casa, de outro lado também é perigoso para a criança estar presa demais à família. A ligação muito forte aos pais constitui impedimento direto para a acomodação futura no mundo. O adolescente está destinado ao mundo, e não a continuar a ser sempre apenas filho de seus pais. Lamentavelmente há muitíssimos pais que persistem em considerar os filhos sempre como crianças, porque eles próprios não querem nem envelhecer, nem renunciar à autoridade e ao poder de pais. Agindo desse modo, exercem sobre os filhos influencia altamente desastrosa por tirar-lhes todas as ocasiões de assumirem responsabilidade individual. Esse método prejudicial ou produz pessoas sem independência própria ou indivíduos que forçam a conquista da própria independência por caminhos escusos. Em contrapartida, há também outros pais que, por causa de sua própria fraqueza, são incapazes de opor à criança aquela autoridade da qual precisará mais tarde para adaptar-se corretamente ao mundo. Como personalidade, tem, pois, o professor tarefa difícil, porque se não deve exercer a autoridade de modo que subjugue, também precisa apresentar justamente aquela dose de autoridade que compete à pessoa adulta e entendida perante a criança. Tal atitude não pode ser obtida artificialmente, mesmo com toda a boa vontade, mas somente se realiza de modo natural, à medida que o professor procura simplesmente cumprir seu dever como homem e cidadão. É preciso que ele mesmo seja uma pessoa correta e sadia; o bom exemplo é o melhor método de ensino. Por mais perfeito que seja o método, de nada adiantará, se a pessoa que o executa não se encontrar acima dele em virtude do valor de sua personalidade. O caso seria diferente se o importante fosse apenas meter as matérias de ensino metodicamente na cabeça das crianças. Isso representaria, no máximo, a metade da importância da escola. A outra metade é a verdadeira educação psíquica, que só pode ser transmitida pela personalidade do professor. A finalidade dessa educação é conduzir a criança para o mundo mais amplo e dessa forma completar a educação dada pelos pais. A educação por parte dos pais, por mais cuidadosa que seja, não deixará de ser um tanto parcial, pois o meio ambiente continua sempre o mesmo. A escola, porém, é a primeira parte do grande mundo real; ela procura ir ao encontro da criança para ajudá-la a desprender-se, até certo ponto, do ambiente da casa paterna. A criança tem naturalmente frente ao professor o modo de adaptação aprendido do pai; projeta sobre ele a imagem paterna, como se diz em linguagem técnica, demonstrando a tendência de identificar a personalidade do professor com a imagem do pai. Por isso o professor precisa abrir sua personalidade á criança ou, ao menos, dar a oportunidade de que ela mesma encontre esse acesso. Desde que o relacionamento pessoal entre a criança e o professor seja bom, pouca importância terá se o método didático corresponde ou não às exigências mais modernas. O êxito do ensino não depende do método. De acordo com a verdadeira finalidade da escola, o mais importante não é abarrotar de conhecimentos a cabeça das crianças, mas sim contribuir para que elas possam tornar-se adultos de verdade. O que importa não é o grau de saber com que a criança termina a escola, mas se a escola conseguiu ou não libertar o jovem ser humano de sua identidade com a família e torná-lo consciente de si próprio. Sem a consciência de si mesmo, a pessoa jamais saberá o que deseja de verdade, mas continuará sempre na dependência da família e apenas procurará imitar os outros, experimentando o sentimento de estar sendo desconhecida e oprimida pelos outros.

No que disse até agora procurei transmitir uma reflexão geral sobre a alma infantil, de acordo com o ponto de vista da psicologia analítica. Durante esse trabalho permanecemos apenas na superfície dos fenômenos psíquicos. Com o emprego de certos métodos de pesquisa, desenvolvidos pela psicologia analítica, ser-nos-á dado penetrar muito mais fundo nesses fenômenos. Mas o emprego prático desses métodos em geral não é da competência do professor; devemos até desaconselhar terminantemente que alguém tente fazer uso deles por diletantismo, ou até por mero divertimento. Certamente seria de desejar que os professores tivessem conhecimento desses métodos; mas esse conhecimento seria desejável não no sentido de ser aplicado na educação das crianças, mas no de ser aproveitado para a própria educação do professor. A educação do próprio professor, porém, reverterá indiretamente em benefício das crianças.

Talvez os senhores se admirem de que eu esteja falando da educação dos educadores. Devo declarar-lhes que, de acordo com a minha opinião, ninguém, absolutamente ninguém, está com sua educação terminada ao deixar a escola, ainda que conclua o curso superior. Deveríamos ter não apenas cursos de formação ulterior para os adolescentes, mas precisaríamos de cursos de educação ulterior também para os adultos. Costumamos educar as pessoas apenas até o ponto de poderem ganhar a vida e casar-se. Com isso se dá por terminada a educação, como se as pessoas já estivessem completamente prontas e preparadas para a vida. Desse modo se abandona ao critério e à ignorância do indivíduo a solução de todos os problemas futuros e complicados da vida. Cabe única e exclusivamente à falta de educação dos adultos a culpa de tantos casamentos desajustados e infelizes, assim como inúmeras decepções na vida profissional; todos esses adultos vivem muitas vezes na mais completa ignorância das coisas principais da vida. Chega-se até mesmo a pensar que os maus modos infantis parecem ser propriedades imutáveis do caráter, ao ocorrerem na idade adulta, quando as pessoas já deveriam ter terminado sua educação e há muito ultrapassaram a idade própria de ainda poderem ser educadas. Trata-se aqui, porém, de um grande engano. Também o adulto é educável, e pode mesmo constituir objeto muito grato da arte da educação individual. Apenas não podem ser aplicados ao adulto os mesmos métodos empregados para as crianças. O adulto já perdeu a plasticidade extraordinária da psique infantil e não pode mais ser atingido em grau tão elevado por influências esquematizadas vindas de fora, pois dispõe de vontade própria, de convicções próprias e de uma autoconsciência mais ou menos pronta e orientada. Acresce que a criança, durante seu desenvolvimento psíquico, deve percorrer as etapas da série de seus antepassados e apenas pode ser educada até ter atingido mais ou menos a etapa moderna da cultura e da consciência. O adulto, porém, já se encontra nessa etapa e se considera portador da cultura atual. Por isso se sente muito pouco inclinado a reconhecer um educador que lhe seja superior, tal como a criança. É também importante que não o aceite, pois de outra forma recairia facilmente num estado infantil de dependência.

O método educacional apropriado ao adulto não pode ser o direto, mas apenas o indireto, que consiste em fornecer-lhe os conhecimentos psicológicos que lhe possibilitem educar-se a si próprio. Não podemos esperar tal tarefa da criança, mas devemos esperá-la da parte de um adulto, sobretudo ao tratar-se de um educador. O educador não pode contentar-se em ser o portador da cultura apenas de modo passivo, mas deve também desenvolver ativamente a cultura, e isso por meio da educação de si próprio. Sua cultura não deve jamais estacionar, pois de outro modo começará a corrigir nas crianças os defeitos que não corrigiu em si mesmo.

Se agora passo a expor aos senhores alguma coisa sobre os métodos de pesquisa da psicologia analítica, gostaria que ficasse claro que o faço para mostrar-lhes a possibilidade da educação ulterior de si mesmo. Torno a acentuar que seria inteiramente errado pretender usar tais métodos diretamente na criança. Para que seja possível a educação de si mesmo, exige-se o autoconhecimento como fundamento indispensável. Esse autoconhecimento é conseguido tanto pela observação crítica e pelo julgamento dos próprios atos, como também pelo julgamento de nossas ações por parte dos outros. O julgamento de si mesmo, contudo, é facilmente sujeito aos próprios preconceitos, enquanto que o julgamento por parte de outros pode estar errado, ou nem sequer é aceito. Seja como for, o autoconhecimento haurido dessas duas fontes é cheio de falhas e confuso, como em geral todos os julgamentos humanos, os quais raramente são isentos de um falseamento provindo do desejo ou do temor. Será que existe um critério objetivo, que nos diga como é que realmente somos? Algo semelhante a um termômetro, que apresenta a um doente, de modo incontestável, o fato de estar realmente com 39,5°C de febre? No que se refere ao corpo não duvidamos da existência de critérios objetivos. Se, por exemplo, temos a convicção de que podemos comer morango sem sentir nenhum mal, como aliás acontece a quase todo mundo, assim mesmo nosso corpo poderá reagir, provocando eventualmente uma erupção cutânea desagradável; esse fato, desde que verificado, ensinar-nos-ia que não suportamos morango, apesar de nossa convicção em contrário. No tocante ao psíquico, porém, tudo se nos afigura como voluntário e sujeito ao nosso arbítrio. Esse preconceito universal provém do fato de confundirmos frequentemente o psíquico com a consciência. Contudo, há inúmeros processos psíquicos, e até muito importantes, que são inconscientes ou conscientes apenas por via indireta. Sobre o que é inconsciente nada podemos conhecer diretamente, mas certos efeitos do inconsciente atingem nossa consciência e assim chegam ao nosso conhecimento. Desde que na consciência tudo se nos apresenta como voluntário, com certeza não encontramos aí, aparentemente, nenhum critério objetivo para o conhecimento de nós mesmos. Mas, apesar disso, há um critério que nos permite chegar ao conhecimento da verdade sobre nós mesmos, porque ele é independente do desejo e do temor e, como produto da própria natureza, é incapaz de iludir-nos. Esta averiguação objetiva, nós a encontramos num produto da atividade psíquica, ao qual só em último lugar atribuiríamos tal relevância. Trata-se do sonho.

Que é então o sonho? O sonho é um produto, da atividade psíquica inconsciente durante o sono. Enquanto dormimos, nossa alma deixa de estar sujeita a nossa vontade consciente, e isso em grau elevado. Com o resto mínimo de consciência que ainda conservamos durante o sonhar, apenas podemos perceber o que ocorre; não dispomos, porém, da capacidade de dirigir o desenrolar dessa atividade conforme nosso desejo ou nossa intenção; e, por isso mesmo, nos achamos privados da possibilidade de nos iludir. O sonho é um processo automático, que se fundamenta na atividade independente provinda do inconsciente e que não está sujeito à nossa vontade, do mesmo modo que o processo fisiológico da digestão. Trata-se, pois, de um processo psíquico absolutamente objetivo, de cuja natureza podemos tirar conclusões objetivas a respeito do estado psíquico realmente existente.

Mesmo concedendo tudo isso, os senhores haveriam de perguntar: como, afinal de contas, será possível tirar uma conclusão digna de crédito, a partir do emaranhado casual e confuso das representações contidas no sonho? Em resposta, direi primeiramente que o sonho parece ser confuso e fortuito, mas se o examinarmos melhor, logo descobriremos um nexo interno muito marcante das imagens oníricas entre si, como também entre elas e os conteúdos da consciência desperta. Chegou-se a esta descoberta por um processo relativamente muito simples. Basta para isso dividir a sequência do sonho em suas fases e imagens, e depois procurar reunir cuidadosamente a cada parte do sonho todas as ideias espontâneas que nos vierem à mente. Realizado esse trabalho, logo perceberemos um relacionamento extraordinariamente íntimo entre as imagens oníricas e as coisas que durante a vigília nos ocupam interiormente. Contudo, logo de início não nos parece muito claro o modo pelo qual esse nexo deva ser entendido. Ao recolhermos as ideias espontâneas, realizamos apenas a parte preparatória da análise do sonho, parte certamente importantíssima. Chegamos assim ao chamado contexto da imagem onírica, o qual nos desvenda todos os variados relacionamentos entre o sonho e os conteúdos da consciência, e isso mostra também como o sonho se acha ligado a todas as tendências da personalidade do modo mais íntimo possível. Depois de termos esclarecido até esse ponto todos os aspectos do sonho, poderemos passar para a segunda parte da nossa tarefa, que é a interpretação do material de que dispomos. Como acontece geralmente no campo científico, também aqui devemos proceder, tanto quanto possível, livres de preconceitos. Devemos como que deixar o material falar por si mesmo. Em muitíssimos casos é suficiente olhar para a imagem onírica e para o material recolhido a fim de poder-se ao menos suspeitar qual é o significado do sonho. Nestes casos não se requer nenhum raciocínio especial para obtermos o significado do sonho. Em outros casos tornar-se indispensável um trabalho laborioso de interpretação, em que precisamos valer-nos da experiência científica. Lamento não poder fazer agora uma incursão no tema certamente amplo do simbolismo do sonho. A respeito disso já foram escritos grossos volumes. No tratamento psíquico não podemos dispensar a experiência acumulada nesses livros, mesmo que haja casos, como já disse, nos quais basta o uso da sã razão.

Para dar-lhes uma ilustração prática a respeito do que afirmei, pretendo apresentar-lhes o caso de um sonho, acompanhado de sua interpretação.

Quem sonhou foi um senhor, de formação acadêmica, de aproximadamente cinquenta anos. Eu apenas o conhecia de um ou outro contato social, e, quando conversávamos casualmente sobre o assunto, ele gostava de aludir com ironia ao charlatanismo de interpretar sonhos. Certa vez em que tornamos a encontrar-nos, ele perguntou-me se eu ainda continuava a interpretar sonhos. Em ocasiões como essas, eu costumava afirmar, como o fiz então, que ele certamente tinha concepções muito errôneas a respeito da natureza dos sonhos. Respondeu-me ele que tinha tido há pouco um sonho, e que eu o devia interpretar. Concordei, e então ele me contou o seguinte sonho: Ele se achava sozinho, prestes a escalar uma montanha muito alta e muito íngreme, que tinha à sua frente. No início a subida foi muito cansativa; mas, a partir de certo momento, quanto mais alto ia subindo, tanto mais se sentia atraído pelo cume da montanha. Subia cada vez mais depressa, e aos poucos entrou em uma espécie de êxtase. Parecia-lhe agora subir voando e, ao atingir o cume, sentiu-se como se tivesse perdido completamente o peso, e se elevou aos ares, acima do cume da montanha. Aí ele acordou.

Queria então saber minha opinião a respeito desse sonho. Eu sabia que ele não era apenas um alpinista experiente, mas que tinha grande entusiasmo pelas escaladas. Por isso não me admirei de encontrar confirmada mais uma vez a velha regra de que o sonho costuma exprimir-se na própria linguagem do sonhador. Como sabia que ele dava grande importância ao alpinismo, pedi-lhe que me fosse contando alguma coisa a respeito das escaladas de montanhas. Ele concordou prontamente e pôs-se a contar que gostava especialmente de escalar sozinho, sem guia, porque o perigo o atraía extraordinariamente. Falou também de umas escaladas muito perigosas; sua ousadia me pareceu muito impressionante. Em meu íntimo eu me admirava, sem saber o que poderia levá-lo a procurar, aparentemente com prazer especial, tais situações cheias de perigo. Ele deve ter pensado em coisa semelhante, pois acrescentou, tornando-se mais sério, que não temia o perigo, pois a morte nas montanhas seria para ele uma coisa linda. Essa observação projetava sobre o sonho uma luz muito significativa. Evidentemente ele estava procurando o perigo, talvez pelo motivo inconfessável de suicidar-se. Mas por que estaria procurando a morte? Devia haver motivos especiais para isso. intercalei, por isso, a observação de que um homem de sua posição não deveria expor-se a tais perigos. Replicou-me imediatamente, em tom muito decidido, que não haveria de desistir das montanhas, que precisava ir para lá, para longe da cidade, para fora da família. Não valia a pena viver sempre em casa. Com isso se abria um caminho de acesso aos motivos mais íntimos de sua paixão. Fiquei sabendo que seu casamento tinha fracassado e que nada o prendia ao lar. Também parecia que já estava mais ou menos entediado com suas atividades profissionais. Assim estava explicada a enorme paixão pelas montanhas: elas significavam para ele a libertação da existência que se tornara insuportável.

Assim ficava esclarecido o sonho dele. Como ainda tinha certo apego á vida, o começo da escalada foi cansativo. Quanto mais, porém, se entregava à paixão que tinha, tanto mais ela o arrastava e até lhe dava asas aos pés. Finalmente a paixão o arrasta acima de si mesmo, seu corpo perde todo o peso, e se eleva acima da montanha, penetrando no vazio do ar. Evidentemente isso indica a morte nas montanhas.

Após um intervalo de silêncio ele disse repentinamente: “Até agora falamos apenas sobre outras coisas. O que o senhor pretendia era interpretar o sonho. Que acha a respeito?” Disse-lhe sinceramente qual era a minha opinião, que ele buscava a morte nas montanhas e que, por ter essa atitude, corria o maior perigo de encontrar de fato a morte.

Respondeu-me a rir-se: “É pura bobagem. Ao contrário, o que procuro é a recreação nas montanhas”.

Foi em vão que tentei esclarecer-lhe a seriedade da situação. Meio ano mais tarde, ao escalar um pico extremamente perigoso, caiu literalmente no vácuo, sobre o guia que se achava mais abaixo e o arrastou consigo para a morte.

Por meio desse sonho podem os senhores perceber qual é, em si, a função do sonho. Ele retrata certas tendências da personalidade, as quais são fundamentais e de importância vital. Seu significado pode ter importância para a vida toda ou apenas para um dado momento. A respeito dessas coisas faz o sonho uma constatação objetiva, sem importar-se com os desejos conscientes e as convicções da pessoa. Se refletirem sobre o sonho acima, os senhores passarão a dar-me razão: em certas circunstâncias, é de importância incalculável para a vida consciente que se considere devidamente o sonho, mesmo que não se trate de um caso de vida ou morte.

Que vantagem moral para seu modo de viver aquele homem poderia ter tirado do sonho; por exemplo, reconhecer sua perigosa falta de moderação!

Eis a razão pela qual, nós, os médicos da alma, recorremos à arte antiquíssima de interpretar os sonhos. Temos de educar os adultos, que já não se deixam conduzir pela autoridade, como as crianças. Além disso a trajetória da vida é tão individual que certamente nenhum conselheiro, por mais competente que fosse, poder-lhes-ia prescrever o único caminho certo. Por isso devemos fazer com que a própria alma da pessoa venha a falar, a fim de que esta compreenda, a partir de seu próprio íntimo, qual é a sua situação verdadeira.

Espero que tenha facultado aos senhores penetrar de certo modo no conjunto de ideias da psicologia analítica, pelo menos na medida em que isso é possível dentro das limitações impostas por uma conferência. Dar-me-ei por plenamente satisfeito se os senhores puderem encontrar no que lhes acabo de oferecer algum estímulo que lhes seja proveitoso em sua atividade profissional.”


 
 
 

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